17.03.2012
Escolhi-te para me dares o ser nesta vida.
Sem o teu prévio parecer,
Não foste tida nem achada,
Acolheste-te-me e deste-me várias vezes a vida.
Um dia já muito distante, numas das noites de serão africanas, sem televisão nem lareira, aconchegados pela música da tua terra, lá longe na Metrópole, nos intervalos das rádio-novelas, que bebias, vivias e decoravas, com o vrroom-vrroom da singer mastigando vezes sem conta as sarjas, os zuartes e os cakis para as fardas dos contratados, disseste mais uma vez:
- A minha vida dava um romance.
Com a tua interpretação perspicaz, voltavas a viver as tuas rádio-novelas, contavas e recontavas as passagens que só tu entendias.
Admiravam-se as vizinhas por te referires a passagens que elas se não tinham apercebido.
Passaram a acreditar (e a dar-te crédito) quando no início do episódio seguinte, quando nos primeiros minutos se repetiam os últimos “dizeres” de forma a situar nas mentes mais esquecidas o que se tinha passado na véspera, se apercebiam que “de facto” aquilo tinha sido dito.
Quantos tiveram conhecimento que mesmo sem nunca teres ido à escola, sem saber ler nem escrever, sabias todas as histórias da carochinha de cor e salteado?
Quantos tiveram conhecimento que mesmo sem nunca teres ido aprender, costuravas como ninguém os vestidos das “senhoras ricas” lá da terra onde crescemos?
Traziam-te uma página de uma revista, onde às vezes faltava um pedaço (a folha tinha sido surripiada à pressa) e ias ajudar a escolher o tecido, as linhas e os botões ou fechos, espiguilhas, bordados, colchetes… e saíam dali com o vestido da moda.
Fazias as mais lindas fantasias para o carnaval.
Fazias as mais lindas vestes para as procissões.
Os meninos e meninas iam de Nossa Senhora de Fátima, de Raínha Santa Isabel, de Santo António, de S. José, de Santa Filomena…
Quanto ganhavas? Não dava para o trabalho nem para o tempo empregue.
Davam-te o valor que pedias a medo, quase com vergonha de teres de pedir alguma coisa, com um muito obrigado D. Etelvina e ainda regateavam os poucos tostões que pedias ao menos para compensar a luz que gastavas.
- Lembras-te?
Um dia eu também fui seleccionado para fazer parte da “equipa especial de ginástica” que a Mocidade Portuguesa ia apresentar a um qualquer dirigente nacional.
Todos teríamos de nos apresentar de calça e sapatilhas (kedes) brancas.
Não havia dinheiro, mas eu fui.
Os kedes foram comprados no sr. Armando Pessoa, a crédito, e as minhas calças foram feitas de um lençol que desfizeste.
- A minha vida dava um romance.
O desabafo de tantas e de tantos quando a vida nos é madrasta.
Gravei a ideia nas gavetinhas do meu cérebro, sem saber como nem porquê, prometi-te.
- Um dia, quem sabe?
A vida foi-nos madrasta e não tivemos tempo de nos sentarmos, e calmamente ir escrevendo o tal romance.
Quando poderíamos ter tido tempo, a vida separou-nos:
Primeiro os afazeres profissionais, depois a guerra, de seguida a necessidade de sobreviver numa terra onde ansiaste voltar mas que a mim me foi mais madrasta do que as madrastas das histórias que nos contavas para adormecermos.
Nessas histórias havia quase sempre um final feliz.
Um cavaleiro andante, uma linda donzela…
Quase sempre iam ser felizes para sempre!
Não estás cá para me corrigir, não estás cá para me lembrares que falta colocar mais isto ou aquilo, que é preciso dar mais ênfase a esta ou aquela situação.
Lembras-te? Não sabias nada das matérias que me eram dadas na escola onde me levaste para eu ser alguém.
Nos serões e enquanto pedalavas ininterruptamente na Singer, ouvias-me com atenção quando eu repetia vezes sem conta as matérias que teria de saber: geografia, história, francês, inglês, marketing e publicidade (quem diria?). Quando te repetia as leis da física e os resultados teóricos obtidos em química.
Eu tinha ouvinte e ao repetir ia aprendendo.
Qual “já” não era o meu espanto quando embebida que estavas nas tuas costuras me interrompias e dizias.
- Diz lá isso outra vez. Parece-me que não é isso.
Voltava atrás… e não é que tinhas razão?
O romance das nossas vidas.
Oito anos depois de teres partido, vou tentar rebuscar nas minhas memórias, as nossas longas conversas, os nossos longos silêncios, o nosso compromisso.
Lá onde estiveres eu sei que me vais ajudar.
Quero ter a força necessária para cumprir a tal promessa que nunca chegou a ser.
Que apenas ficou gravada nos nossos silêncios.